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domingo, 25 de maio de 2014

Sensação de estar sendo observada

Da minha janela eu consigo vê-la.
Ela passa andando devagar, sem pressa, mesmo com a garoa que embaça os óculos.
Cigarro entre os dedos, isqueiro na outra.
Vejo ela entrando num boteco, conversa com o balconista. Ele a entrega uma long neck de cerveja, continuam conversando. Deve ser sobre o jogo que passa na televisão. Ela continua com essa mania de fingir se importar com o assunto do momento.
Ela paga, pede também uns chicletes e sai.
Mesmo de longe, percebo que ela está chapada.
Os olhos caídos e os sorrisos de canto da boca denunciam.
Também acendo um cigarro. Quero ver até onde ela vai.
Deve estar ouvindo alguma dessas bandas alternativas que declamam textos em melodias. Lembro que ela me dizia que se identificava. Um amigo em comum havia apresentado e desde então ela não parava de ouvir.
Ela parou no cruzamento da Paulista com a Augusta. O farol está aberto mas ela não atravessa. Deve estar pensando se está fazendo a coisa certa. Aperta a bolinha entre os dedos. Pra quê tanta indecisão?
"Aqui estou eu, há meia hora parado no cruzamento da Brigadeiro Luiz Antônio com a Avenida Paulista. Pensando. Simplesmente pensando".
Mesmo assim, desce sentido baixo Augusta. Parece atenta as faixadas dos bares. Será que procura alguém?
Um rapaz a para e pede alguma coisa. Ela mexe na bolsa, nos bolsos e percebe que estava em sua mão. Era o isqueiro. Os dois riem.
Continua descendo.
Pára numa esquina, acende outro cigarro e compra mais uma cerveja.
Agora, segura a garrafa e o cigarro com a mesma mão e a bolinha em outra. Aperta com tanta força que se não fosse de espuma já havia quebrado.
"Nesse tempo que eu parei aqui tantas pessoas passaram por mim: empresários, mendigos, boys...
E até o zé doidim, que eu mesmo reconheci. Pessoas com mundos totalmente diferentes, mas que, naquele momento, naquele cruzamento, se cruzaram! Interessante, né?!"

Por alguma razão, deve ter lido alguma coisa no celular, ela entra e senta no balcão do estabelecimento.
Outra cerveja.
Os olhos e a expressão não negam o efeito do baseado que ela já fumou. Agora, na terceira garrafa de cerveja ela já está alta o suficiente pra se arrepender das escolhas que está prestes a fazer.
Alguém a chama e ela se senta numa mesa. O lugar está cheio de gente. Ainda estão todos falando sobre o tal jogo de futebol, o mesmo do papo com o balconista minutos atrás.
Alguém liga. Ela atende, ri e a ligação cai.
Eu sei que ela está incomodada com alguma coisa. Não queria estar ali. Quer sempre mais do que acha que pode conseguir. Eu nunca a entendi por inteira...
Ela sai com um grupo de pessoas. Anda devagar, pensa rápido.
Por ora percebo que ela cogita voltar o caminho. Mas segue.
Outro cigarro e a mania de morder o piercing. Ela está realmente incomodada. Engraçado. Sempre se diz tão livre e realmente é. Não sei porque não segue suas vontades.
Se distancia do grupo e entra numa padaria. Sai sem comprar nada. Se afasta ainda mais. Agora não tem bolinha, nem isqueiro. Ela não quer estar ali. Tenho vontade de descer da minha janela e ir buscá-la. Parece que só precisa que alguém lhe dê a mão...
"Todos os dias, em vários lugares, milhares de pessoas se cruzam mas não se falam, pois não se conhecem, e nem ao menos se importam com isso."
Vejo que ela anda ainda por mais um quarteirão.
Pensa, menina.
Sai daí.
Ela fala alguma coisa com a turma e atravessa a rua correndo.
"Penso.
Naquele momento, naquele cruzamento, tanta solidão em movimento."

E continua correndo.
Corre.
Anda rápido.
Engole a cerveja que está na mão e anda.
Muito bem. Vem pra cá. Tenho o que você tanto busca, menina.
Alguém a puxa pelo braço. A cara dela condena a ação.
Conversam. Ela ri, mas quer chorar.
Se solta e continua andando.
Entra no metrô. Aumenta o volume dos fones de ouvido. Ainda é aquela banda esquisita.
"Ando, paro e respiro...
E fico comigo, confabulando: será que são apenas corpos vazios?
Ou será um engano?"

Penso se ela tinha outra opção. Divago sobre o destino, o livre arbítrio e aquela teoria sobre Caim ter transado com a uma macaca e daí ter iniciado a evolução. Até hoje essa é a resposta mais condizente. Criacionismo e evolucionismo andando juntos.
"Não. Engano não.
Eu sinto no ar o silêncio na multidão".

Enquanto eu observo seu percurso, imagino o que tanto ela pensa. Tão sozinha. Tão vulnerável. 
Observando e absorvendo.
Meu papel nessa história é apenas registrar os desencontros que acontecem por aqui, os que eu consigo ver pela minha janela.
Essa foi só mais uma noite daquelas.
Lembra daquele verso "parece cocaína mas é só tristeza"? Às vezes é só cocaína mesmo.
"Eu vejo as pessoas que passam por mim, que falam, que ralam, que gritam em agonia e solidão. Dói no coração ver meu povo silencioso".

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Me deu saudade de Pernambuco

Eu quero ter o sotaque das raízes da minha família.
Quero falar arrastado, afoito e alto.
Acho lindo o China cantando Erasmo e Roberto levado pelo Mombojó.
Quero frevo, calor, água de coco e praia.
Quero chinelo, short, vestido e porque não saia?
O sofá da minha avó, o leite que desce pesado e que eu nunca me acostumei.
Os pés de fruta da casa da dona Deci que eu passava tardes sentada debaixo comendo o que caía.
As compotas de caju, mamão e figo que ela fazia e me ensinava o ponto.
As fantasias de carnaval que ela e minha vó costuravam na salinha de 2 m².
Trote dos cavalos e o cheiro de chuva que trazia consigo os sapos na calçada.
Dia de feira com queijo fresco,  missa bem vestida sentada do lado do filho do prefeito que gosta do sotaque paulistinha.
Os sabores do pernambuco são muito mais intensos.
O cheiro de suor, de música boa e de vida simples me fazem lembrar do meu avô.
Me ensinou a andar de cavalo, colher caju e assar castanha.
Dizia baixinho que eu era a neta preferida e ficava horas me contando da vida, dos 28 filhos e da primeira esposa.
Pena que não me lembro muito bem das histórias, só dos olhos azuis naquele rosto todo queimado de sol, os guias de Iemanjá no pescoço e o chapéu de vaqueiro.
Seu Antônio Felipe.
Me contou teorias sobre o fim do mundo durante a virada do ano, enquanto a cidade inteira passava o réveillon trancada em casa de luzes apagadas com medo do bug do milênio.
Minha avó Judite, cega de um olho, costurava inúmeros modelos de vestidos para as minhas bonecas.
Cada uma tinha o guarda-roupa próprio, vestido de noiva e moda praia.
Quando o carro do pão passava na rua, já sabia a quantidade que ela pedia e com a porta sempre aberta, entrava na sala e a chamava.
Os macaquinhos que moravam no quintal de trás e só iam no ombro dela. O milharal, as flores e as galinhas cantando enquanto engordavam.
Tio Cil, o único que permaneceu por lá, me levava na garupa da moto pras cidades vizinhas, me apresentava pra todo mundo e o centro de Garanhuns era pequeno pra imensidão do mundo que eu conseguia enxergar.
Tia Rose e o primo Flavio, sempre tão queridos, conversávamos como gente grande e eu, no auge dos 11, nem tinha ideia do tamanho da saudade que eu iria sentir.
Hoje, no último ano da faculdade, trabalhando e tentando equilibrar a leitura do livro novo, show que já comprei ingresso e o tcc, só queria me deitar na rede do quintal e ter como única preocupação o leite que não me fez bem.


 

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